Daniel estava atrasado de novo. Era a terceira vez nessa semana que perdia o ônibus para ir ao trabalho. Bem, ainda era quinta-feira, poderia quebrar o próprio recorde e atrasar mais duas vezes...
Quando o próximo ônibus passou, já eram oito e dez da manhã. Levaria aproximadamente 20 minutos para chegar ao trabalho, Bruno não ficaria feliz com esse outro atraso.
"Claro que a culpa não é minha", pensava Daniel, tentando se segurar, em pé, no ônibus lotado. "Faltou água e energia em meu prédio, tive que descer pelas escadas, mas ninguém se importa com a vida da gente. Querem apenas saber se você chegou antes das oito e saiu depois das seis..."
Tentando afastar o pensamento do inevitável confronto com Bruno, seu superior na empresa, Daniel voltou sua mente para Marta, sua namorada. Completariam seis meses de namoro hoje, e ele planejava leva-la para jantar fora. Ela gostava de comida chinesa, e havia um bom restaurante perto de seu apartamento, ela sempre ficava feliz em ir lá.
Depois de tantas namoradas, em um período tão curto de tempo, Daniel achava que, finalmente, tinha encontrado a pessoa certa.
Olhando ao redor, Daniel pode ver Júlia, uma colega de trabalho, sentada a algumas cadeiras de distância. Ele quase lamentou te-la visto, não estava disposto a manter essas conversas sociais, mas por uma questão de educação a cumprimentou, mas simulou dificuldade em se mover entre as outras pessoas em pé, para não ter que ir falar com ela.
Ambos trabalhavam em uma empresa multinacional de produtos farmacêuticos. Haviam grandes laboratórios no interior do país, precisamente no Vale das Araras, no Estado de Goiás, mas Daniel nunca havia ido lá.
Seu trabalho era burocrático, e ele jamais havia saído da sede da empresa, aqui em São Paulo.
Notou que Julia acenou para ele, com um sorriso que parecia mais preocupado que feliz, mas realmente não queria falar com ela.
Um estrondo enorme, como se uma bomba houvesse explodido foi seguido por uma dor aguda no braço esquerdo e pescoço. Daniel tentou prestar atenção ao que acontecia, mas só conseguia ver o piso do ônibus. Tentou em vão entender o que as pessoas falavam ao seu redor, sem sucesso.
De repente, como um tijolo acertando uma vidraça, ele percebeu horrivelmente três coisas: Uma, havia acontecido um acidente com o ônibus. Duas, ele mal conseguia se mover. E três, não havia som algum. Nenhum grito, nenhum barulho de motor, nenhum som de buzina, nenhum passo, nenhum mosquito.
O silêncio mais impossível que poderia ocorrer em São Paulo, e ele bem no centro dele!
Virar o pescoço para o lado foi um sacrifício enorme, mas ao fazê-lo, Daniel pode ver todas as pessoas paralisadas, como se estivessem congeladas. Júlia havia deixado cair a bolsa, mas ela não tocara o chão. Estava apenas ali, boiando no ar, como uma fotografia. Virando a cabeça com dificuldade para o outro lado, pode ver pela janela uma São Paulo completamente desconhecida.
Um pombo estava parado no ar, bem ao lado da janela do ônibus. Do lado de fora, centenas de carros silenciosos se alinhavam absolutamente sem movimento, uma obra de arte em três dimensões, completamente estática. Daniel notou também, para além daquele silêncio ensurdecedor, que nem as folhas das poucas árvores visíveis se moviam. Era como estar preso dentro de uma dolorosa fotografia.
Então, alguma coisa se moveu do lado de fora. Ou pelo menos, algo pareceu se mover. Tentando girar o corpo para o lado para aumentar seu ângulo de visão, Daniel se sentiu preso dentro de gelatina, mas uma gelatina muito densa, o que tornava quase impossível o movimento.
Do lado de fora, o que havia lhe chamado a atenção surgia agora bem de frente aos seus olhos. Era um carro, ou algo parecido com um carro. O veículo parou ao lado do ônibus e, por um momento, pareceu mudar de forma, antes de uma porta se abrir.
Três pessoas desceram do veículo, e nesse momento Daniel tive a certeza de que estava sonhando. Uma daquelas pessoas que se moviam, as únicas pessoas no mundo que se moviam, uma delas era ele mesmo!
Daniel estava vendo a si mesmo, do lado de fora do ônibus! E essa outra versão dele, que podia se mover, vestia um macacão branco, usava um tipo de telefone celular ou comunicador preso a uma das orelhas e estava se aproximando da janela.
Por alguns segundos, esse novo e móvel Daniel ficou olhando o Daniel do ônibus, detidamente. Era como se procurasse algum sinal, algum movimento. O Daniel de dentro do ônibus achou melhor não se mover, não só pela dificuldade, mas pelo terrível medo que agora o abatia.
_Vamos lá, temos 15 segundos para gerar o efeito Doppler! -Falou o Daniel de fora do ônibus, e o Daniel de dentro ouviu com uma nitidez impressionante, como se fosse - e provavelmente era - o único som em todo o planeta. Ao ouvir o som límpido de sua própria voz, Daniel notou que alguns bancos do ônibus mudaram um pouco de forma, ou de lugar. Uma mudança qualquer, ainda não bem definida, foi observada por Daniel. A bolsa de sua colega Júlia, que ainda estava parada no ar, agora estava em outra posição. As roupas das pessoas também estavam diferentes, como se uma grande ventania houvesse ocorrido. Era como se tudo dentro do ônibus estivesse tentando se afastar do Daniel de fora, ou do som da voz do Daniel de fora.
Daniel de dentro pode ver um dos homens fora do ônibus levar o dedo à boca, pedindo silêncio ao outro Daniel.
Algumas janelas do ônibus, do lado onde os três homens de macacão branco estavam, pareciam trincadas agora.
Meio em pânico, Daniel tentou novamente se mover, e dessa vez o outro Daniel o viu se movimentar. Então, tudo aconteceu muito depressa. As pessoas de fora do ônibus passaram a se mover lentamente, como em uma câmera lenta ao vivo. O Daniel dentro do ônibus viu sua cópia arregalar os olhos, ao descobrir que ele podia se mover!
O Daniel do lado de fora correu em direção ao ônibus, em direção ao seu "gêmeo". Nos lábios de um dos outros homens, Daniel podia ler as palavras, "quatro", "três"...
A cópia de Daniel chegou bem próximo à janela do ônibus, a boca aberta, e Daniel achou que ele
estava gritando, mas não pode ouvir nada...
"dois..."
Daniel ainda viu sua cópia se virar para os outros homens, gesticulando algo que parecia ser um comando para cancelar algo, desligar algo.
"hum..."
Se os outros viram a sinalização da cópia de Daniel, não fizeram ou puderam fazer nada a respeito.
"zero"
_Muito bem, Daniel, no horário pela primeira vez na semana! -Bruno, o chefe de Daniel falava com desdém, uma crítica dentro de um elogio.
_O que?
_Bem, vamos aproveitar que você nos deu a honra de sua companhia, e adiantar o inventário dos equipamentos requisitados pelo laboratório.
Daniel apenas se afastou de Bruno, e é provável que nem tenha entendido uma única palavra. Sua cabeça rodava com milhares de informações e dúvidas. E o acidente com o ônibus? E o seu "clone"? Não se lembrava de ter ao menos chegado no trabalho!
Daniel afastou-se de Bruno e após alguns passos, se apoiou na parede. Passou as mãos no rosto, tentando colocar os pensamentos em ordem. Ao afastar aos mãos que tampavam o rosto, Daniel pode ver Júlia sentada à sua mesa, a alguns passos de distância. Meio cambaleante, Daniel foi até ela.
_Júlia, o que foi que aconteceu? O acidente com o ônibus...
_Bom dia, Daniel. Que acidente?
_Como que acidente? A cinco minutos nós dois estávamos em um ônibus que sofreu um acidente! Tudo ficou parado... Você não se lembra?
_Não posso dizer que entendi sua piada, Daniel, mas eu não vim de ônibus para o trabalho hoje. Meu noivo me deu uma carona. Você este envolvido em algum acidente? -A respiração de Daniel quase parou. Em algum lugar dentro de sua mente, ele temia que isso acontecesse.
_Júlia, você não se lembra?
_Daniel, lembrar de que?